É sexta-feira à noite no largo do Arouche. Grupos de amigos bem vestidos fazem burburinho em frente ao restaurante francês La Casserole —parte deles espera para entrar na casa, enquanto outros aguardam para ir ao Infini, bar dos mesmos donos e aberto dentro do mesmo imóvel, no centrão de São Paulo.
Logo ao lado, há uma sauna gay. A poucos metros, um pessoal conversa enquanto toma cervejas no boteco da esquina. No Mercado das Flores, um novo bar recebe casais, sentados entre plantas. Há uma van de cachorro-quente em frente ao Térreo, ponto de drinques ali perto.
Moradores de rua tentam conseguir algum trocado, mas logo são afastados pelos seguranças. É bom ficar esperto com os celulares. Enquanto isso, a comunidade LGBTQIA+ começa a ferver e a ocupar a avenida Vieira de Carvalho, que liga o Arouche à praça da República.
Não é exagero dizer que o coração de toda essa movimentação é o La Casserole, que há 68 anos mantém garçons alinhados servindo pratos clássicos da culinária francesa no mesmo local. Mas isso não significa que o espaço tenha parado no tempo nem que suas raízes não tenham gerado galhos e frutos.
Há três gerações no endereço, a família Henry criou um pequeno ecossistema com negócios que são em tudo diferentes —mas, ao mesmo tempo, harmoniosos. É o caso do ultramoderno bar de drinques Infini, que fica escondido dentro do antigo salão de eventos do Casserole. Há também o Bar das Flores, que funciona dentro de uma floricultura em frente ao restaurante. Por fim, o Térreo serve drinques para um público mais jovem.
Mas tudo começa mais de meio século atrás, quando o restaurante foi inaugurado em um momento em que a região representava o que havia de mais sofisticado na capital. Era quando casas como o Fasano e o Rubaiyat tinham unidades ali na Vieira de Carvalho, antes de seguirem o fluxo de crescimento da cidade e subirem em direção aos Jardins.
Nos anos 1990, o clima mudou para um glamour decadente, retratado até na televisão. Era no Arouche, por exemplo, que vivia a família falida, mas cheia de pompas, do humorístico "Sai de Baixo", lançado em 1996 na Globo. Mas essa região de São Paulo mudou mais uma vez —e vem se tornando um lugar descolado, assim como o largo, que passou por uma reforma em 2020.
"A gente teve um pouquinho de dificuldade nessa época, quando começou essa mudança de eixo na cidade. Mas nunca a ponto de questionar se deveríamos nos mudar ou não", diz Marie Henry, 65, que hoje comanda os negócios junto ao filho Leo, 31. Foram seus pais, Fortunée Henry e Roger Henry, que abriram o Casserole em maio de 1954.
Ela diz que não faltaram convites nos últimos anos para se mudarem para o Itaim Bibi, para a região dos Jardins ou algum shopping. "Sempre neguei todos."
"Tem pessoas que nos ligam para avisar que estão saindo de outra cidade para vir comer tal prato", completa Leo Henry. Por isso é impensável que algum dos medalhões do menu sofra qualquer alteração.
A especialidade ali é a culinária clássica francesa. Algumas receitas são preparadas praticamente da mesma maneira desde a abertura, como os escargots, servidos à moda da Borgonha, na manteiga de alho e ervas, a partir de R$ 78. O steak tartare segue o mesmo caminho, com carne picada e servida crua com batatas fritas, por R$ 74. O mesmo vale para o filet au poivre, filé-mignon ao molho suave de pimentas mais batatas ao creme, que custa R$ 89.
Mas essa cobrança pela tradição não engessa a cozinha ou o ambiente. A seção de clássicos da casa é seguida de uma série de sugestões vegetarianas e massas que certamente não constam nos cadernos de receita tradicionais da França. São criações de Marie para agradar uma gama maior de clientes. Entre os pratos, destacam-se o arroz negro com frutos do mar (R$ 87) e o risoto de cevadinha com minilegumes e chips de mandioquinha (R$ 59).
O salão também passou por discretos retoques aqui e ali. A última reforma foi no fim de 2019. "As pessoas entram no Casserole e dizem que está tudo igual. Só que não está", conta Leo. "Trocamos a cor das paredes, os quadros mudaram, tiramos os lustres", lista.
Se dentro do restaurante a palavra de ordem é tradição, o entorno segue a batucada da experimentação —sobretudo depois da entrada de Leo no negócio, há cerca de dez anos. "Antes mesmo de entrar, eu entendi que o Casserole não era um lugar para trazer um monte de propostas novas, mas para respeitar sua identidade", diz.
Leo começou a tatear as possibilidades do largo do Arouche em 2019 com a inauguração do Térreo, um bar de drinques bons e baratos que mira um público jovem. Logo deu início ao projeto do Infini, o espaço de alta coquetelaria e arquitetura sofisticada criado em parceria com o empresário Facundo Guerra e com a chef Daniela França. A nova casa divide o imóvel com o restaurante desde o fim de 2021.
A abertura do Infini inspirou a criação de ainda mais um bar, no Mercado das Flores, o tradicional espaço para compra de plantas que funciona desde 1927 no largo do Arouche. "O Mercado das Flores foi um dos motivos que levou os meus avós a escolherem o local para abrir o restaurante", conta Leo. O proprietário da floricultura brinca que os negócios namoraram todos esses anos, mas só agora resolveram se casar.
"Sair do carro e entrar diretamente em um restaurante é uma experiência igual em qualquer lugar", diz o dono do Casserole. Mas ele defende que o diferencial ali está no endereço e em suas opções —como começar a noite bebendo um drinque numa floricultura ou emendar o jantar numa casa francesa clássica a uma festa na Vieira de Carvalho.
Ao sair do restaurante e deixar a fachada vermelha do La Casserole para trás, a fauna do Arouche se apresenta mais uma vez. Pessoas entram na sauna, casais namoram na praça, amigos aguardam nas filas de espera, mas também passam moradores de rua e todo o tipo de gente em direção à cracolândia, que se espalha por ruas, alamedas e avenidas vizinhas. "É um pessoal que está aqui no bairro, não são uma pedra no sapato", afirma Leo.
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