Descrição de chapéu Crítica
Restaurantes

Restaurante Star City é máquina do tempo que serve a mesma feijoada desde 1953 em SP

Casa ostenta cardápio quilométrico, mantém garçons há décadas e toca clássicos do mela-cueca

Disse Stanislaw Ponte Preta que uma feijoada é completa de fato apenas se tiver uma ambulância de plantão. O restaurante Star City, em Santa Cecília, no centro de São Paulo, dispensa esse requisito, pois fica a duas quadras da Santa Casa de Misericórdia —uma maca resolve qualquer emergência.

A casa está no mesmo ponto da rua Frederico Abranches desde 1962, mas funcionava desde 1953 perto dali, na avenida Angélica, dez anos antes da inauguração da faculdade de medicina da Santa Casa.

Feijoada completa do restaurante Star City, no centro de São Paulo
Feijoada completa do restaurante Star City, no centro de São Paulo - Adriano Vizoni/Folhapress

É um fóssil vivo de uma espécie praticamente extinta: a dos restaurantes que oferecem feijoada todos os dias, com serviço de mesa incessante até o cliente pedir arrego ou morrer. De seus pares, o Gouveia virou uma farmácia na avenida Santo Amaro, mas o Bolinha, ainda mais velho, de 1946, resiste no Jardim Europa.

Um dado fascinante sobre lugares como o Star City e o Bolinha é que, apesar de serem famosos pela feijoada e só por ela, ostentam cardápio quilométrico.

O vetusto restaurante de Santa Cecília serve sopa creme de aspargos (R$ 45,50), língua ao molho madeira (R$ 68,90), estrogonofe de camarão (R$ 108,90), bacalhau à Gomes de Sá (R$ 90,90) e espeto misto à gaúcha (R$ 69,20), entre dezenas de pratos ameaçados de extinção.

Será que alguém cruza as portas do Star City para pedir canja (R$ 45,50)? Será que o talharim à parisiense (R$ 48,20) tem alguma saída?

Sei lá. Sei apenas que nunca pedi nada além de feijoada desde que comecei a frequentar o lugar, no final dos anos 1980 —ou no início dos 1990, desculpe, a memória já fraqueja.

Era no Star City que um seleto grupo de ogros da faculdade se reunia para espetáculos degradantes de comilança. Tínhamos 20 anos, 20 e poucos anos, encarávamos feijoada até no jantar. Coisa que o Star City tinha.

Mas não tem mais. Ainda serve feijoada todo dia no almoço, menos na folga de segunda-feira, mas deixou de abrir à noite, porque nunca foi um hit noturno. Nunca foi um hit em absoluto, por sinal.

Desde que pisei lá pela primeira vez, há 30 anos ou mais, o lugar irradia adorável decadência. A começar pelas garrafas gigantes e idosas de uísque, expostas em vitrines simétricas que ladeiam a porta de entrada. Elas ainda estão lá, como pude constatar na minha volta depois de um hiato de cinco anos —informação do robô espião do Google.

Também permanece o samovar cromado que, aos sábados, transpirava com o gelo da batida de limão inclusa no pacote da feijoca. Está aposentado, porém. Uma lástima. Eu amava a torneirinha de cachaça.

Balcão do restaurante Star City, com garrafas ao fundo
Balcão do restaurante Star City, com garrafas ao fundo - Adriano Vizoni/Folhapress

Seguem no salão os bancos inteiriços de couro sintético vermelho, as cadeiras com capa de pano para o espaldar, os guardanapos de tecido dobrados feito origamis, as mesas subdimensionadas para sujeitos robustos como eu.

E o mais importante de tudo: continuam a trabalhar os garçons de três décadas atrás, impecáveis em seus paletós champanhe. O Ednaldo está lá desde 1986. Seu Luís, memória fraca como a minha, entrou em 1992 ou 1993.

Era uma quarta-feira especialmente calorenta. O cardápio acenava com a opção de escolher feijoada sem reposição por R$ 69,90. Nem em sonho: pedi a feijoada completa com direito a explodir de tanto comer, por R$ 89,90. Era preciso honrar a tradição.

Seu Luís disse que demoraria alguns minutos para preparar a guarnição: couve, bisteca, banana à milanesa, mandioca frita, arroz e bacon. Para a espera, trouxe um saboroso caldinho de feijão, a batidinha de lei, uma bandeja de pururucas e um cesto de torradinhas.

No som ambiente, clássicos do mela-cueca internacional interpretados por um saxofonista que o aplicativo Shazam não reconheceu. Assim que o Luís apontou ao longe com a cumbuca maior do que sua cabeça, soaram os primeiros acordes de "My Heart Will Go On", tema do filme "Titanic". Adequado.

Seria desonesto dizer que o Star City entrega a melhor feijoada de São Paulo. É uma feijoada muito boa, com altos e baixos.

Todo o conteúdo da cumbuca passa com louvor: caldo grosso e bem temperado, completão, com rabo, língua, pé e orelha; carnes macias e abundantes, mas sem roubar o protagonismo do feijão preto. Tudo estava igual como era antes.

Na baixela de acompanhamentos, uma couve viçosa e verdinha, arroz normal, bisteca grelhada okay e frituras um bocado oleosas. Ótimos molhos de pimenta e de feijão com vinagrete picante. Quase nada se modificou.

Quem fechou a conta foi o dono, Milton Buzzo, na mesa junto à parede com fotos de família emolduradas e desbotadas, onde ele sempre esteve. Não é exagero. Milton, que tinha seis meses quando os pais abriram o restaurante, cresceu lá.

O Star City é um portal do tempo para uma São Paulo que já não existe. É um espaço onírico onde tudo permanece como sempre foi.

Só que nada permanece para sempre. Vá logo, se quiser comer uma feijoada de 1953.

Milton Buzzo dono do restaurante Star City
Milton Buzzo, dono do restaurante Star City - Adriano Vizoni/Folhapress

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