'Nem pensei em não militar', diz Laerte, alvo de retrospectiva no Itaú Cultural

O Itaú Cultural (centro de São Paulo) exibe a partir de domingo (21) a 20ª edição do projeto Ocupação, desta vez sobre a artista Laerte –no feminino, como a cartunista da Folha prefere.

Gratuita, a mostra fica em cartaz de terça a sexta, das 9h às 20h, e aos sábados e domingos, das 11h às 20h.


São mais de 2.000 tiras, ilustrações e curtas-metragens pinçados pelo curador Rafael Coutinho, filho de Laerte.

A retrospectiva, que se desenvolve em um labirinto, resgata as militâncias da quadrinista, desde a recente defesa das liberdades de sexo e gênero até o sindicalismo dos anos 1970 e 80.

"É uma coisa natural. Eu sempre militei nos contextos que vivi. Quando era comunista, militava, e enquanto profissional de artes gráficas também militei. Nem pensei em não militar ou em fazer de outra forma", ela afirma.

Outra atração são algumas pinturas e desenhos em contornos distintos dos usados nas tiras, o que a artista diz ser uma exceção: "Minha atividade de artes plásticas é muito reduzida. Acho que me interessei mais pelo desenho porque ele atende mais e melhor a impaciência que eu tenho com relação a ver o trabalho pronto. Pintura é artesanato, demora", afirma.

Informe-se sobre o evento e saiba mais na entrevista a seguir.


"Guia Folha" - Como você se sente apresentando uma retrospectiva?
Laerte - É uma sensação meio ambígua. Ao mesmo tempo em que coloca pra mim... Uma espécie de "história das glórias"... (risos) [Por outro lado,] também me dá uma sensação de encerramento... Não consigo parar de pensar nisso: apanhados tão gerais de uma trajetória supõem que ela já deu o que tinha que dar! (risos) Na verdade, sinto que ainda estou meio em construção. Exagerando muito, é como se eu estivesse morta! E não estou. De qualquer jeito, é interessante de se ver, porque eu nem sempre paro para pensar em tudo o que eu fiz.

Você tem alguma obra ou alguma área da mostra preferida?
Não tenho uma área preferida, não. A mostra é toda impressionante, porque se constitui fisicamente em um labirinto. A formação física dela é simbolicamente interessante, foi pensada com essa intenção. Lá no final, no que seria o útero do espaço, tem um grande painel com mais de 900 tiras. Eu gostei disso.

Por que o labirinto é simbolicamente interessante?
Porque em princípio é um lugar de morte, foi construído como uma armadilha que conduzisse pessoas para o sacrifício nas mãos do minotauro. Como eu própria fiz uma nova versão do minotauro, o labirinto também se tornou outra coisa. Passou de símbolo de morte e sacrifício para uma metáfora da complexidade da vida. Imagine só, o labirinto não tem um lado de fora. É interessante pensar que os caminhos levam a lugares diferentes, mas nos confundem.


A mostra inclui algumas pinturas. Você tem muita produção nessa área?
Superpontuais, minha atividade de artes plásticas é muito reduzida. Ao contrário do Rafael [Coutinho, seu filho e curador da Ocupação]. Não sei explicar. Acho que me interessei mais pelo desenho porque ele atende mais e melhor a impaciência que eu tenho com relação a ver o trabalho pronto. Tenho uma ideia e quero vê-la pronta. Pintura é artesanato, demora.

E como foi ter seu trabalho esmiuçado pelo seu filho?
Foi engraçado! E emocionante também, porque tenho uma admiração muito grande por ele como artista. Além de ser uma pessoa mais organizada que eu. É difícil descrever, é uma relação de intimidade que tenho com ele e com minha filha, uma coisa que me deixa relaxada, confortável.

Você acha que seu exemplo e sua atuação (como na Associação Brasileira de Transgêner@s) já contribuíram a um maior entendimento do transgeneridade?
Espero que sim, não sei. A questão vem se demonstrando cada vez mais em pauta, agora não só enquanto um tópico específico na luta LGBT. A letra T hoje tem um um protagonismo que não tinha antes, quando era quase um rabicho do LGBT. Hoje existe muita atenção para essa questão, são preocupações que vêm crescendo de importância, como demonstra a evolução dos debates eleitorais.

E por que você fez questão de militar ao invés de passar anônima?
É uma coisa natural. Eu sempre militei nos contextos que vivi. Quando era comunista, militava, e enquanto desenhista e profissional de artes gráficas também militei nas organizações de que fiz parte. É algo do meu temperamento. Quando comecei a viver a minha transgeneridade em público, entrei em contato com pessoas incríveis, que estão na luta e têm uma beleza muito grande no modo de encarar a necessidade de direitos e de respeito. Isso me encantou muito. Nem pensei em não militar ou em fazer de outra forma.

Em entrevistas há dois, três anos, você se dizia em revisão do seu processo criativo, buscando soluções e desafios. Conseguiu atingir aquele alvo?
Às vezes falo coisas meio contraditórias, mas hoje assumi uma compreensão dessa passagem em que estou como um processo que, em princípio, não tem fim. É só o processo mesmo, sabe? Uma busca que vai me levar a novas buscas. A diferença é que abandonei todos os procedimentos-padrões que eu tinha, tanto os de personagens, quanto os de "modus operandi" narrativo de construir piadas e tal. Abandonei tudo em nome de criar com mais liberdade. E lá vou eu! Esse tipo de reflexão sempre leva a novas questões, não há um lugar a chegar.

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