A Mostra de Tiradentes se preparou para comemorar seus 25 anos em grande estilo, com a volta do chamado presencial. Aí veio a ômicron e o plano gorou. Melhor para quem está longe da cidade mineira e pode acessar os filmes gratuitamente no streaming até este sábado (29).
Melhor ainda: a mostra mineira programou uma homenagem a Adirley Queirós, exibindo oito de seus filmes. Para quem não sabe, Queirós é um dos principais cineastas brasileiros deste século, situação que afirmou aos poucos, desde seu primeiro curta, "Rap, o Canto de Ceilândia", de 2005.
Queirós vem de Brasília. Mais especificamente, de Ceilândia, cidade-satélite que nasceu quando foram despejados os pobres que haviam montado uma favela no caminho entre o aeroporto e Brasília, isto é, bem na rota de presidentes, deputados, visitantes ilustres.
Queirós fincou pé ali, como que para trazer à cena a gente que foi tirada dela, pessoas que hoje habitam as ruelas pobres de Ceilândia, uma população que surgiu com força em "A Cidade É uma Só?", de 2011, e ressurgiu no surpreendente "Branco Sai, Preto Fica", de 2014.
Branco sai e preto fica! Como assim? No nosso mundo o normal é que os pretos sejam convidados a se retirar quando há brancos por perto e eles não são serviçais. Mas o filme trata do caso bem específico em que a polícia que invadiu um baile com essa palavra de ordem. A garotada negra que dançava apanhou até dizer chega. E até bem depois.
O cineasta montou sua história de ficção e documentário com as vítimas: um ficou preso à cadeira de rodas, outro anda com ajuda de uma perna mecânica até hoje. Não foi um final feliz para hábeis dançarinos. Eles nunca souberam por que apanharam. Exceto por isso mesmo: por serem pretos.
Com esse filme e outros como "A Cidade É uma Só?" , em que trata justamente da formação de Ceilândia, ele desenvolve a forma da ficção que vai com frequência ao encontro do documentário.
Às vezes é o documentário que domina de ponta a ponta, como nos dois belos filmes sobre futebol que fez, "Meu Nome É Maninho", de 2014, feito para o canal SporTV, e "Fora de Campo", de 2009. Neles não aparecem os ricos craques de seleção, mas os jogadores cuja carreira começa e termina nos times de segunda divisão, onde só têm emprego por alguns meses ao longo do ano e, não raro, não recebem nem sequer o salário.
Mas, sim, há ficção nisso. O futebol é feito de chutes, mas também de sonhos —que, claro, quase nunca se realizam. Nesses filmes, Queirós concilia a ternura pelos personagens com a secura da demonstração: esse é o Brasil, essa é a Brasília real.
Talvez o ponto mais ousado dessa trajetória seja "Era uma Vez Brasília", que ganhou uma menção especial do júri no Festival de Locarno de 2017 e chamou a atenção do crítico do jornal Libération, que considerou sua exibição na França urgente.
Na França, talvez. No Brasil, o filme espera até agora para chegar às salas. Em Tiradentes, teve apenas sua pré-estreia. A pergunta é: encontrará seu público? A história diz respeito a WA, astronauta do planeta Kaspenthal, que vem ao Brasil com a tarefa de matar o presidente Juscelino Kubitschek exatamente no dia em que ele está inaugurando Brasília, em 1960.
Algo sai errado no espaço-tempo e WA aterra no dia da votação da deposição de Dilma Rousseff. As decorrências políticas importam muito —o discurso inaugural de Michel Temer como presidente é hoje peça antológica de fanfarronice, equívoco e, talvez, cinismo—, mas não vêm ao caso aqui. Além de ser o filme de Queirós em que a beleza mais se impõe, pela leveza e expressividade dos enquadramentos, o desenvolvimento dos personagens é atraente e paradoxal.
Em WA, assim como em seus parceiros terráqueos, o que chama a atenção é essa mistura de tristeza e revolta, de impotência e rebeldia. De repente, eles perseguem alguém. Mas a quem? O que no princípio é óbvio (um mundo feito para oprimi-los) se enche de abismos, de incêndios, de todos os fogos, de sentimentos mistos que tornam esse filme noturno como a "Fuga de Los Angeles", de John Carpenter, uma coisa ao mesmo tempo sofrida e delirante. Estamos numa ficção talvez científica, filmada sem cerimônia alguma, à maneira livre do Godard de "Alphaville".
Isso tudo leva a perguntar se esse filme encontrará seu público. Não o dos festivais de cinema ou das salas de arte, mas aquele mesmo capaz de melhor vivenciá-lo: o público das periferias, que vive entre o trabalho, o medo, o desemprego, a inclemência dos juízes de direito.
Uma mostra de Queirós é imperdível pela originalidade do olhar, pela força da expressão, pela inteligência, mas, sobretudo, pelo que tudo isso —o olhar, a expressão e a inteligência aí contidos— tem de implacável como representação do Brasil. Representação a que o Brasil oficial, se puder, dá as costas.
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